‘Remédio’: Engenheiro é único em Salvador autorizado a plantar maconha em casa

Publicado em

Tempo estimado de leitura: 7 minutos

Na frente da casa de E.*, há uma horta orgânica com mudas de tomate que acabam de brotar em frutos. A outra plantação dele está longe dos olhos dos vizinhos e dividida em dois cômodos. Mantidas sob luz e temperatura controladas, 20 pés de maconha crescem. Nada é ilegal. O jardinheiro das hortaliças e da cannabis é o único de Salvador com autorização judicial para cultivar a planta que é o remédio dele. 

A decisão do juiz saiu em fevereiro deste ano. O engenheiro estava no trabalho quando saiu o veredito: estava autorizado a plantar maconha e circular com produtos derivados dela, como o óleo e a pomada, sem risco de ser preso. Ele gritou ao ler a sentença. Os colegas perguntaram o que tinha acontecido. �??Nada não�?�, respondeu E., que preserva a informação. A família o apoia. 

�??Não quero ser �??o cara que planta maconha�??�?�, justifica ele, diagnosticado com problemas reumatológicos que causam dores crônicas. 

A reportagem e dois advogados são os primeiros estranhos a entrar na casa dele. A sala tem o cheiro característico das plantas que crescem nos cômodos do segundo andar e agora, secas, estão em uma mesa de centro. Todos os dias, depois do café da manhã, E. toma uma colher de óleo de cannabis (nome científico da maconha), de aparência escura e textura viscosa.

csm Reme dios cannabis 7947c2bfcf
Produtos medicinais feitos em casa (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Depois de 20 minutos, receptores do corpo são encontrados pelos princípios da maconha. A agonia de E. é suavizada. Há uma lista de 26 doenças e sintomas que podem ser amenizados pelo tratamento com cannabis.

Leia mais: Pacientes baianos lutam para plantar maconha e produzir canabidiol

O Habeas Corpus (HC) preventivo concedido a E. é uma possibilidade jurídica encontrada por pessoas que usam cannabis medicinalmente. Como a planta é ilegal no Brasil, o instrumento evita riscos penais, mas é atendido na minoria das vezes, ainda que os pacientes possuam respaldo médico. 

O fato de E. ser o único, em Salvador, com respaldo legal para cultivar maconha é ilustrativo o suficiente. O plantio de cannabis para uso medicinal e científico é previsto no Brasil desde 2006.

�??Esse é o meu remédio. Me sinto muito melhor hoje�?�, diz ele, enquanto segura plantas secas de cannabis. No mesmo cômodo, está uma cópia da decisão judicial que garante a legalidade do que vemos. Há outras cópias para levar no carro ou em viagens. 

Decisão é histórica, mas ainda há conservadorismo

Como as hortaliças que crescem na horta, a maconha que brota nas três estufas precisa de condições ideais para florescer. Cada uma delas é montada com luzes e um ventilador. O custo de energia mensal chega a R$ 800. Do plantio à feitura do óleo, na cozinha de casa, são, em média, dois meses. 

fcsm cannabis estufas b8a281cea3
Parte das plantações caseiras (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Em um dos dois quartos reservados à produção, há uma pilha com sete livros sobre o manejo do solo. �??Tem que estudar, se não, não dá certo�?�. Os dias de chuva são os mais temidos – podem mofar as plantas. 

�??�? histórica essa decisão, queremos até fazer um mapeamento dos HCs, mas é complicado, pois muitas vezes correm em segredo�?�, diz Natalia Ferreira, advogada de E. e representante da Rede Reforma na Bahia. Desde 2020, Ferreira atua em casos como o do engenheiro.

Há registros de HC para cultivo em Salvador, Vitória da Conquista, Ilhéus e Porto Seguro �?? provavelmente o primeiro, expedido em 2019. �??�? importante dizer que nem todos têm acesso, conhecimento técnico e podem bancar. A maioria das pessoas que precisa não tem�?�, explica a advogada Maina Tavares.

Ela e o sócio Arthur Adler são os únicos, sediados em Salvador, especializados no atendimento de clientes que buscam o óleo de CBD ou um HC para cultivo. A própria Maina, diagnosticada com fibromialgia, ingere o óleo. Nas farmácias brasileiras, o preço de 30 ml é, em média, R$ 2,1 mil. 

Desde 2019, a Anvisa autoriza a importação e a compra de derivados de cannabis com prescrição. No ano passado, 35 mil pessoas solicitaram a importação.

�??Para o HC, ainda há um conservadorismo do Judiciário em relação a uma substância que pode ser o remédio de muita gente�?�, avalia Maina.

O pedido do HC para cultivo corre na Vara criminal, já os pedidos de que o Estado ou o plano de saúde custeie o óleo de CBD são julgados na Vara Cível. O primeiro HC que se tenha registro no Brasil é de 2016 e contemplou uma carioca diagnosticada com síndrome neurológica.

 A Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) não informou quantos pacientes são contemplados com a distribuição gratuita do óleo de CBD. 

�??O governo sempre vai dizer: �??o canabidiol não está nas normas técnicas do SUS’, que são os tratamentos previstos para certas doenças”, explica Arthur, o sócio de Maina.

Quando um juiz decide pela legalidade do cultivo da maconha, as autoridades policiais são avisadas. Na falta de uma lei específica, cada juiz estabelece limites para o plantio, como a quantidade de mudas.

Nas estufas montadas por E., podem ser plantadas até 60 sementes de cannabis, compradas em sites estrangeiros. Cada pacote com dez delas custa R$ 128.

No Brasil, a família Fischer, de Brasília, é pioneira na luta pela cannabis. A caçula, Anny, tem um distúrbio neurológico raro, que causava 80 convulsões por semana. Ela passou a ingerir óleo de CBD ilegalmente e o quadro clínico melhorou, o que levou a mãe e o pai dela a pedirem na Justiça o direito ao uso. A ação, vencida em 2013, pavimentou o caminho para outras disputas.

Maconha foi alívio para a dor 

Desde os 15 anos, E. sente dores que saem da coluna e irradiam no corpo. O médico dizia que eram �??dores do crescimento�?�, mas não parecia normal que virar adulto doesse assim. Pior ficou quando cresceu e a dor permaneceu. Na Europa, para onde ele se mudou para estudar, soube do potencial medicinal da cannabis, estudado desde os anos 80.

A maconha possui mais de 400 substâncias, mas as mais conhecidas, relacionados ao seu efeito medicinal, são o CBD e o tetrahidrocanabidional (THC). 

O primeiro tem ação analgésica, sedativa e anticonvulsiva. O segundo auxilia nos efeitos da ansiedade e depressão. As propriedades medicinais existem porque os componentes da planta interagem com um sistema existente no corpo, o endocanabinoide, que participa da regulação de processos fisiológicos. 

csm Cannabis c27c3559f4
“Esse é meu remédio”, diz E. (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Só porque estava na Alemanha, na década passada, E. teve acesso ao óleo de CBD, a plantações legalizadas e cursos de plantio e extração. De volta ao país natal, teve de plantar com fins medicinais sem ninguém saber. As dores aliviavam, mas E. não sabia as dosagens ideais. Em 2017, a agonia física piorou. �??Fui em uns oito médicos�?�.

A Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) existia há dois anos e oferecia uma lista de médicos prescritores por estado. Hoje, aparecem 16 especialistas sediados na Bahia. Na lista da Abrace, E. viu um neurologista. Foi ele quem, entre tantos, sugeriu a cannabis, em 2019. 

O engenheiro, depois de anos de medicamentos e duas microcirurgias, iniciou o périplo pelos relatórios para pedir nos tribunais o direito de plantar a maconha. O principal deles é um relatório médico que ateste a ineficácia dos métodos anteriores, em contrapartida da eficácia da cannabis.

Em setembro de 2021, E. iniciou a briga judicial. Em maio daquele ano, Salvador ganhou a primeira clínica focada no tratamento à base de cannabis. Era uma das provas que a luta de E. começava em um terreno mais fértil para a cannabis.

‘Não é perfil da maioria dos médicos [prescrever]’, diz médica

Nos consultórios médicos, o perfil de quem busca a cannabis medicinal inclui tanto o paciente que vê como tabu a ideia da maconha como tratamento quanto quem tenta conseguir os relatórios que precisa. 

�??Acredito que há uma busca por mim porque me coloco em certos espaços de militância, mas não acredito que seja um perfil da maioria�?�, opina Ursula Martins Catarino, médica sanitarista prescritora de cannabis. 

Da primeira vez que Ursula se interessou pelos efeitos na saúde, em 2019, o diploma da graduação em Medicina já amarelava dos 20 anos de existência. �??As coisas estavam avançadas, a quantidade de material científico era grande�?�, conta. Os cursos de especialização se concentram em São Paulo.

Em 2014, o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu uma resolução sobre o �??uso compassivo de CBD�?� para portadores de epilepsias. Oito anos depois, não emitiu novo posicionamento. 

�??A questão da autonomia do médico, tão discutida na pandemia para a prescrição de cloroquina, não é tão forte quando se fala em cannabis�?�, indica Ursula. 

Entre os médicos, a posição ainda não é definida. Quando Vanessa Silva, 26, falou à neurologista do filho, Gabriel, sobre tratar as crises do garoto com CBD, ouviu: �??De jeito nenhum�?�. A criança está no Espectro Autista moderado e não falava. Vanessa assistiu a um vídeo em que um médico mostrava pesquisas que sugeriam a melhora da qualidade de vida de pessoas como o filho dela.

Para ter acesso ao óleo, buscou uma médica prescritora. Mas faltava o dinheiro para o produto. Desde junho do ano passado, o menino toma 20 gotas de canabidional por dia porque uma empresa norte-americana doa o produto. A família, de Amargosa, cobra judicialmente que o Estado pague o tratamento. 

Vanessa fará um curso online de plantio de cannabis e extração do óleo, ministrado por uma associação, para não depender das doações. Serão dois meses de aula, por R$ 350. �??Sabemos que não tem cura, mas o óleo trouxe qualidade de vida�?�.

csm cannabis medicinal 0214160bd4
Folhas de maconha transformadas em óleo e pomadas (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Depois de uma semana de uso, Gabriel falou �??não�?� pela primeira vez. Até então, ele se expressa por meio de autolesões.

A substituição dos alopáticos também logo se provou benéfica para E. O engenheiro recorda, em 2020, de uma noite de crise remediada pelo óleo de CBD. �??Em 30 minutos, já estava melhorando�?�, recorda. 

Há dois dias, as dores de E. estão mais intensas. A carga de trabalho aumentou e a necessidade de ficar sentado impôs seu preço. Ninguém vê na cannabis um milagre. �??�? quase impossível não doer. Mas estamos seguindo, como sempre�?�. 

Neste final de semana, ele deve preparar quase 500 ml de óleo de CBD para os próximos quatro meses. Nem para todo mundo o remédio será um comprimido – às vezes, ele brota verde do solo. 

*Nome modificado a pedido do entrevistado.

Que você achou desse assunto?

ÚLTIMAS NOTÍCIAS

- Publicidade -

ASSUNTOS RELACIONADOS

TRE-BA realiza solenidade celebrativa de posse do novo presidente na próxima semana

Na próxima segunda-feira (29), às 17h30, o Tribunal Regional Eleitoral da Bahia (TRE-BA) realizará uma solenidade celebrativa de posse do novo presidente da Corte, desembargador Abelardo da Matta Neto.    O evento será no auditório do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), localizado na 5ª Avenida do Centro Administrativo da Bahia (CAB), em Salvador.   

Homem negro morre nos EUA após ser detido e rendido por policiais

Um homem negro morreu após ser detido e algemado pela polícia nos EUA. Os policiais continuaram a aplicar pressão sobre suas costas mesmo após a vítima estar rendida e gritando: "Eu não consigo respirar".   ?? Homem negro morre nos EUA após ser detido e rendido por policiais Confira ?? pic.twitter.com/jXePTj7aey — Bahia Notícias (@BahiaNoticias)

Defensoria Pública inaugura atendimento itinerante em escolas públicas

A Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF) vai inaugurar mais uma unidade móvel de atendimento itinerante, dessa vez, exclusiva para as escolas públicas de Planaltina. O intuito é oferecer serviços jurídicos diretamente aos estudantes e suas famílias, facilitando o acesso à Justiça, a resolução de problemas jurídicos, fortalecendo o vínculo entre a comunidade escolar e