Nós só precisamos ir

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Eu tinha em torno de 10 anos quando escrevi um livrinho chamado A Ilha dos Bananais. Uma edição de um volume só, fruto de um trabalho coletivo: meu pai datilografou o texto escrito à mão por meu irmão mais velho (já que minha caligrafia era indecifrável) e colocou uma capa verde com o título e o meu primeiro nome de autor: P.H. Sales da Silva. A trama girava em torno de piratas que chegavam a uma ilha tropical no Alasca (sim, na minha mente de criança isso era possível) e acabavam fazendo amizade com os nativos.

A Ilha dos Bananais nasceu provavelmente das minhas leituras de infância: aventuras de Tio Patinhas, histórias de piratas e principalmente o livro Viagem ao Mundo Desconhecido, sobre a primeira viagem de circunavegação pelo planeta, comandada pelo navegador Fernão de Magalhães. Já naquele tempo eu almejava desbravar o mundo, perder países e ser outro constantemente, como nos versos de Pessoa.

Um ano depois, movido por esse anseio �?? e pelo sucesso absoluto de A Ilha dos Bananais no restritíssimo círculo familiar �??, decidi escrever outro livro. Desta vez, sobre dois amigos que se aventuravam em um Fusca numa viagem do Brasil aos Estados Unidos, passando no caminho por todos aqueles países das Américas. Era uma empreitada muito mais difícil e logo abandonada, pela total incapacidade de descrever cenários que eu nunca vira e sequer imaginara.

Mas o desejo de conhecer o país e o mundo permaneceu, daí continuar tentando �?? dentro de minhas limitações �?? obedecer à necessidade imperiosa de �??ir em frente, ir a seguir / A ausência de ter um fim, / E a ânsia de o conseguir!�?�. A mesma necessidade que enxerguei em Jesse Koz e seu companheiro inseparável Shurastey, que décadas mais tarde materializaram a história que apenas esbocei nos meus cadernos de escola naquele início dos anos 80. Pena que com um fim tão trágico e imerecido.

A bordo de um Fusca 1978, Jesse Koz e seu simpático golden retriever saíram de Balneário Camboriú, em Santa Catarina, passaram por 17 países e queriam chegar até o Alasca. Foram impedidos por um acidente fatal ocorrido há duas semanas, próximo à cidade de Portland, nos Estados Unidos. Jesse tinha 29 anos e pelas fotos parecia ser um cara legal, do bem, que amava a companhia do seu cão e o chamado da estrada.

Jesse e Shurastey foram destemidos e se lançaram ao desconhecido como eu gostaria de ter feito e que, por comodismo, grana curta e compromissos da idade adulta, não fiz. Pensando neles e em mim, eu me pergunto: por que a necessidade de desbravar o desconhecido, tão frequente no nosso imaginário juvenil, se esvai com o passar dos anos até quase sumir, como se nossa consciência fosse uma cobra que vai se desfazendo das peles antigas à medida que cresce? O que nos leva (não a todos, evidentemente) a abdicar deliberadamente de anseios tão caros nos nossos anos de formação?

No meu caso, permanece o anseio de morar em um país europeu, de onde possa partir rumo aos extremos do continente e voltar para casa sem precisar enfrentar um voo de 12 horas por sobre o Atlântico. Morar mesmo: apreciar a descoberta de uma comida desconhecida, me comunicar diariamente em outra língua, conhecer paisagens e pessoas estranhas, enfim, viver em constante estado de alumbramento e poder compartilhá-lo com minha família.

Há em mim uma nostalgia. Sou, por mais que desconheça isso, parte do imigrante que deixou o velho continente há mais de 100 anos para se estabelecer no Brasil. Não sei bem o seu nome (Jacinto, talvez), mas sei que veio de Portugal, a ponta peninsular da Europa, a pista de decolagem para o novo mundo desconhecido. Como esse bisavô, carrego comigo uma espécie de saudade. E essa saudade não me abandona.

Se seria feliz lá? Quem sabe. Talvez fosse até acometido pelo velho banzo que minava as forças dos escravos arrancados da África, pois é bem provável que também corra em meu sangue esse sangue dos deserdados.

Em On The Road, Jack Kerouac �?? ou melhor, seu alter ego Sal Paradise �?? afirmou que ele e seus amigos de estrada desempenhavam a única função nobre da sua época: mover-se. Não sei se essa é a única função nobre de uma época, qualquer que seja, mas certamente é uma delas. Porque, mesmo por vezes alquebrada, a necessidade de movimento permanece acesa em nós. Tenhamos 10, 29 ou 52 anos.

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