De que trama você é personagem, qual é o seu papel nesse caos?

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Tenho tentado observar este momento sem preguiça. Olhar as coisas como se fossem novidades, como se eu não estivesse imersa, como se eu não estivesse de saco cheio, como se eu não soubesse, como eu se nunca as tivesse visto, antes. Assim, desacostumada, consigo adjetivar o que vivemos com palavras como “interessante”, “curioso” e similares, deixando de lado o “pavoroso”, o “irritante”, o “deprimente”. Mesmo que só por instantes. 

 Esse “pós-pandemia” já começa a ser incrível por ser chamado com o prefixo “pós”, quando a pandemia se prova em curso para qualquer pessoa que consiga olhar ao redor. Uma denominação certamente saída da mesa de alguém do marketing, esses profissionais que têm, como premissa, a ideia de que “contra argumentos, não há fatos”. Quase Hegel. Como sabemos, não se acessa fatos sem mediação. A isenção é um ideal e, portanto, inalcançável. Em eventos de grande porte como o que vivemos, são múltiplas e intensas as mediações, inclusive a da subjetividade individual e/ou coletiva. 

Ou seja, há muitas pandemias. Abundantes percepções do fato e diversas campanhas publicitárias em curso, para convencimento do maior número de pessoas, de determinadas percepções do fato. Percebe? �? a primeira vez que vivemos algo dessa dimensão, nessa intensidade, com a circulação de narrativas que temos hoje. Isso, no Brasil, com uma maioria da população de senso crítico limitado, que não percebe, sequer, que a palavra escrita em letras garrafais na camiseta de marca lhe faz objeto e não sujeito naquele ato. A pessoa paga caro, veste aquilo e ainda se acha o máximo. 

 Trágico? �?. Mas, também, muitíssimo interessante. Tenho me divertido na análise. Amadora, claro. Sou autodidata em generalidades. A tentativa me entretém ao me colocar em busca do fio da meada, pensando, ao ouvir pessoas e setores: “de que trama você é personagem, qual é o seu papel nesse caos?”. Estado geral desordenado que precede e se intensifica na pandemia. Vazio primordial. Não me sinto em outro lugar além desse, neste momento que vivemos, ainda com o agravante de uma doença que, entre outras sequelas, pode nos deixar sem memória, meio lentos e abobados. 

 (Mas que a tal campanha insiste: “é só uma gripe, não tem problema, todo mundo vai pegar.”) 

 O que é isso, na prática, no miudinho, no dia a dia? Eu gosto de usar o exemplo do setor da educação privada porque venho acompanhando cada passo. Vamos analisar? Logo no começo, com o início das aulas online, a pandemia provou que “a escola”, como é, não presta mais. A insuficiência, que só era percebida pelos alunos – e demonstrada no tédio deles, ao qual não se dá importância – entrou em todas as casas. O modelo vertical e conteudista faliu e todos pudemos ver os motivos pelos quais precisamos “estimular nossos filhos a estudar”. Porque estudar tá um saco, desse jeito. Você prestou atenção? Salvo pessoas psiquicamete adoecidas, ninguém precisa ser estimulado a sentir prazer e viver belezas, que é o que aprendizagem deve ser. Inclusive a formal. 

Os empresários foram pegos de calças curtas, viram o modelo de negócio em perigo pela exposição e subsequente questionamento. Então, tomaram a decisão de levar todo mundo de volta para as salas, custe o que custar. Salvar o negócio como é, esconder os problemas, em vez de reformular. Não se pensou em educação, mas em uma campanha publicitária. “Lugar de criança é na escola”, como se “criança” e “escola” fossem personagens estáticos. A campanha incluiu a conceituação das escolas como “o lugar mais seguro para crianças e adolescentes, inclusive durante a pandemia”, mesmo antes das vacinas. 

A campanha é desmentida na prática, com o absurdo número de infectados, três meses após a retomada das aulas 100% presenciais. (�? “pós” o que, mesmo?) Essa bomba seria suficiente para que famílias apenas tirassem seus filhos e filhas das escolas e exigissem uma solução coletiva dos empresários do setor. Mas se amofinam com medo da “reprovação”, levando em conta decisão de “diretor”, esperando que o médico dê atestado pro filho de imunidade baixa, sem tomar para si o legítimo poder de defender e decidir pela prole. Todo mundo “rezado”, como se diz em minha terra, pra definir quem tá sendo tolo.

 Nao estivessem, as famílias, sugestionadas pela campanha, cobrariam que empresários repensem a segurança e eficácia contínuas da escola. Não se contentariam com a gambiarra temporária para a crise sanitária porque o problema é anterior ao momento atual. Exigiriam, no espaço digital, por exemplo, algo além da imitação do modelo presencial que, já antes da pandemia, não funcionava. A cópia virtual do que não dá mais certo, evidentemente, também não vai prestar. Daí, vem o argumento de que “ensino virtual não funciona”, utilíssimo para o setor que precisa voltar para o ponto “pacífico” onde estava. Quem não pensa come o reggae e la nave va. 

 (A culpa é do meio e não do método? Ah, tá.) 

 Tiveram tempo para refletir. Bastante. Não se propuseram a nada além de retomar o negócio como sempre foi. Só que as famílias estão protegidas pelo poder familiar. Em relação à própria prole, estão acima de qualquer instituição, têm direito e obrigação de proteção. Mas nem pensam que, com uns tantos processos judiciais rolando, ao mesmo tempo, teriam chance de abrir jurisprudência e mudar as bases de negociação. 

 Em tese, nenhuma família é obrigada a mandar filhos para situação de risco. Também em tese, todas têm direito de cobrar escola de qualidade e adequada ao novo tempo (e nem menciono que essa é uma obrigação do poder público). As que sabem disso, se irritam, mas não se juntam pra atuar. Outras famílias, antes amantíssimas, passaram a achar natural arriscar crianças e adolescentes, em nome de uma palavra que a mim, nesse contexto, parece algo vaga e mal-empregada: “educação”. Os interesses do setor, por ora, vencem. Sujeição do poder familiar ao mercado. Curioso isso, não? 

 �? só um exemplo. Há muitos. O setor de entretenimento vive algo parecido e a campanha também trabalha com a mesma tática – pelo menos no Brasil muito bem-sucedida – de inverter os significados de “pulsão de vida” e “pulsão de morte”. Só associando o conceito de “morte” aos comportamentos de preservação da espécie e reduzindo o sentido de “vida” a altas doses de dopamina, conseguem viabilizar, por exemplo, a financeiramente redentora “retomada do São João”. Isso, quando a ciência nos mostra a – possivelmente definitiva – inviabilidade das multidões. O setor também precisa manter o modelo. Assim como a educação, também não trabalhou na reconstrução de si. Curiosíssimo. 

Que laboratório, senhoras e senhores! Que laboratório rico e perturbador! Sou grata por poder estar aqui e agora. Também por ter aprendido a perguntar “a quem interessa que eu pense assim?”, diante de qualquer “verdade” posta. �? o primeiro ponto a refletir sobre todas as mediações de fatos. Porque, sim, há os fatos. Ainda que seja ingênuo imaginar acesso direto a qualquer um deles, podemos trabalhar a mediação interna, individual. Que pessoa quero ser? Atualmente, estou feliz sendo a que sofre gaslighting cotidianamente, mas não teme o raríssimo achado de trombose pós-vacina, quando está provada a ocorrência da mesma trombose em 2/3 dos que tiveram covid. Por exemplo. 

Do mesmo modo, não consigo achar defeito no ato de alguém descer e subir um rio da Amazônia, em um barco, pesquisando para escrever um livro. Trabalhando. Mesmo que fosse só uma aventura. �? gostoso, dá prazer, é vida. A aberração, o erro, o defeito é que, naquele pedaço de rio, houvesse perigos não naturais esperando justamente por aquele barco. Que a viagem tenha terminado em morte e esquartejamento. 

 Assisto ao vídeo de Bruno Ferreira cantando uma música indígena, no meio da mata e só vejo beleza. Um outro, com Dom Phillips dando aulas de inglês, numa comunidade, cantando e dançando Beatles, também me comove. Profundamente saudáveis e felizes, os dois me pareceram. Me vem à cabeça que, neste momento, o Brasil odeia pessoas saudáveis e felizes. Pessoas visceralmente conectadas à vida são saudáveis e felizes. A mediação oficial do fato, a narrativa do mais alto cargo do país, pretende convencer de que Bruno e Dom estavam “no lugar errado” ou, pelo menos, “do jeito errado”. Que nem a mulher estuprada que tá sempre com a “roupa errada” ou “correu risco porque quis”. Hoje, eu só observo. Vomito outro dia. 

Pós-verdade. “Circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência para definir a opinião pública do que o apelo à emoção ou crenças pessoais”. Bolo doido. �? tudo trágico e cansativo, porém, de fato, um momento muito curioso sobre o qual pensar. Agora, me deixe que eu vou ali ver Cachoeira enfeitada pro São João, antes de a multidão chegar. Tomar licor, só em casa, que é onde eu posso tirar a máscara. PFF2. Cuidado com o álcool perto da fogueira. Cuidado com a varíola do macaco. Cuidado com o grande risco que é não pensar. Ou viaje na dopamina, esqueça tudo isso e se deixe levar. Escolhas. En avant tout, pessoá! Eu prefiro dialogar com o caos.

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