O Doping das Crianças

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O que o aumento do consumo da �??droga da obediência�?�, usada para o tratamento do chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, revela sobre a medicalização da educação?

Um estudo divulgado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deveria ter disparado um alarme dentro das casas e das escolas �?? e aberto um grande debate no país. A pesquisa mostra que, entre 2009 e 2011, o consumo do metilfenidato, medicamento comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e Concerta, aumentou 75% entre crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos. A droga é usada para combater uma patologia controversa chamada de TDAH �?? Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. A pesquisa detectou ainda uma variação perturbadora no consumo do remédio: aumenta no segundo semestre do ano e diminui no período das férias escolares. Isso significa que há uma relação direta entre a escola e o uso de uma droga tarja preta, com atuação sobre o sistema nervoso central e criação de dependência física e psíquica. Uma observação: o metilfenidato é conhecido como �??a droga da obediência�?�.
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O boletim da Anvisa é uma indicação de que o uso abusivo do metilfenidato pode se tornar um problema de saúde pública no Brasil. A pesquisa é o ponto de partida para vários caminhos de investigação, inclusive jornalística. Por que Porto Alegre é a capital brasileira com maior consumo da droga? Por que o Distrito Federal é, entre as unidades da federação, a que registrou maior uso de metilfenidato? Por que Rondônia, entre os estados do norte, tem um consumo 13 vezes maior que o estado com menor consumo registrado? O que diferencia os médicos brasileiros, concentrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que mais prescrevem o medicamento no Brasil? E por que os três maiores prescritores, dois deles profissionais do Distrito Federal, são os mesmos nos três anos pesquisados? Em 2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na compra da droga da obediência �?? R$ 778,75 por cada mil crianças e adolescentes com idade entre 6 e 16 anos. �? preciso seguir as pistas e compreender o que está acontecendo.
A TDAH seria um transtorno neurológico do comportamento que atingiria de 8 a 12% das crianças no mundo. No Brasil, os índices são bastante discordantes, alcançando até 26,8% . Os sintomas considerados para o diagnóstico em crianças são: apresentar dificuldade para prestar atenção e passar muito tempo sonhando acordada; parecer não ouvir quando se fala diretamente com ela; distrair-se facilmente ao fazer tarefas ou ao brincar; esquecer as coisas; mover-se constantemente ou ser incapaz de permanecer sentada; falar excessivamente; demonstrar incapacidade de brincar calada; atuar e falar sem pensar; ter dificuldade para esperar sua vez; interromper a conversa de terceiros; demonstrar inquietação.
Um parêntese. A droga tem sido usada por jovens e adultos de todas as idades, na crença de que ela potencializaria a atenção e o rendimento. �? difícil quem não conheça alguém que já usou o medicamento para fazer provas na escola ou na universidade, assim como em vestibulares e concursos. O uso é disseminado no ambiente profissional, utilizado por quem quer melhorar seu desempenho ou precisa terminar um trabalho em prazo curto. Também é popular entre aqueles que querem ficar �??bombados�?� para uma balada. Alguns recorrem ao mercado ilegal, outros simulam os sintomas de TDAH nos consultórios médicos para conseguir a receita. Sobre esse tipo de consumo há unanimidade: é totalmente contraindicado.
Entre as considerações finais, os autores da pesquisa da Anvisa, Márcia Gonçalves de Oliveira e Daniel Marques Mota, afirmam:
– Os dados demonstram uma tendência de uso crescente no Brasil. No entanto, a pergunta que precisa ser respondida é se esse uso está sendo feito de forma segura, isto é, somente para as indicações aprovadas no registro do medicamento e para os pacientes corretos, na dosagem e períodos adequados. O uso do medicamento metilfenidato tem sido muito difundido nos últimos anos de forma, inclusive, equivocada, sendo utilizado como �??droga da obediência�?� e como instrumento de melhoria do desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos. Em muitos países, como os Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças, afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente. Na verdade, o medicamento deve funcionar como um adjuvante no estabelecimento do equilíbrio comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas, como educacionais, sociais e psicológicas. Nesse sentido, recomenda-se proporcionar educação pública para diferentes segmentos da sociedade, sem discursos morais e sem atitudes punitivas, cuja principal finalidade seja a de contribuir com o desenvolvimento e a demonstração de alternativas práticas ao uso de medicamentos.
Além do questionamento proposto pelos autores, outras perguntas podem e devem ser colocadas: existe um doping legalizado das crianças? A escola, em vez de olhar cada aluno a partir da sua história e de sua singularidade, está sendo agente de um processo de homogeneização e silenciamento de crianças e adolescentes considerados �??diferentes�?�? Estaria a droga da obediência sendo usada como uma espécie de �??método pedagógico�?� perverso? O que isso significa? E por que não há uma discussão mais ampla em toda a sociedade brasileira?
A controvérsia sobre a droga da obediência e o chamado Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é grande. Por uma série de razões, porém, pouco chega à população. �? comum ouvir nas ruas, nas escolas e nas festas infantis que alguma criança é �??hiperativa�?�, já que o diagnóstico e a crença de que a suposta doença possa ser resolvida com uma droga se difundiu na sociedade. Para uma parcela significativa das pessoas, soa como uma daquelas verdades �??científicas�?� inquestionáveis.
Na realidade, os questionamentos são muitos. Há quem denuncie que os diagnósticos são mal feitos, levando à prescrição equivocada do medicamento. Há quem defenda que a doença sequer existe �?? seria uma invenção promovida pelo marketing da indústria farmacêutica. Para colaborar com o acesso ao que poderia ser chamado de �??o outro lado do TDAH�?�, elenquei algumas das principais críticas e ponderações sobre a patologia e o uso da droga, feitas por pesquisadores das áreas da medicina, psicologia, psicanálise e educação. Todos os artigos citados �?? exceto um, ainda inédito �?? têm livre acesso e podem ser lidos na íntegra na internet. O foco principal é a relação entre a droga/diagnóstico e a escola, explicitada de forma inequívoca pelo boletim da Anvisa.

 

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